quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

MÚSICA PROIBIDA



Se fosse em outros tempos, aqueles famigerados anos dominados pela ditadura, em que a liberdade de expressão simplesmente deixou de existir, e em que os grandes jornais, censurados pelo absurdo, publicavam receitas de bolos em lugar de notícias, poderia até fazer um pequeno esforço para tentar entender as cenas que vêm se tornando rotineiras no cotidiano paulistano.

Dia desses, a caminho do trabalho, matando o tempo do trajeto com a leitura de alguns ensaios sobre silêncio e prosa, o silêncio sempre desejado, mas nunca alcançado para qualquer leitura dentro do transporte público, desta feita, foi inundado pelo som que, logo nos primeiros acordes, reconheci o mestre Luiz Gonzaga “numa sala de reboco”, transbordando poesia, forjado entre os arcos e as cordas de dois violinos.

Um rapaz moreno com seus dreadlocks fazendo dupla com a mocinha branca, também de dreads e roupas hippies. Viajavam no centro do vagão do metrô, espalhando música aos ouvidos dos passageiros.

Ao parar na primeira estação, a música parou e um pequeno discurso se ouviu sobre a dificuldade de se viver de música no país. Uma moça que desembarcou, antes de sair, abaixou-se e depositou uma cédula no chapéu colocado junto a uma das portas.
Logo que a porta se fechou e o trem seguiu viagem os violinos retomaram a música. Agora, Vivaldi espalhava Primavera dentro do vagão em silêncio. O silêncio parecia referendar a iniciativa dos músicos. Melodia e harmonia em perfeita sintonia.

Na parada da segunda estação não teve discurso. Mais duas pessoas que desembarcaram deixaram, antes de sair, a sua pequena contribuição aos amadores e amantes músicos.

Fechei o livro que lia e fiquei aguardando o que viria até a próxima estação.

O trem partiu e desta vez o ecletismo se confirmou na vibração das clássicas cordas. Simplesmente, Satisfaction. Os dois violinos passeavam dentro do vagão tirando sorrisos e expressões de admiração dos rostos surpresos dos passageiros. Admiração e espanto meus também. Em menos de dez minutos de viagem eu já ouvira Luiz Gonzaga, Vivaldi e Rolling Stones!

Confesso que pensei não poder haver nada melhor dentro de um vagão de metro, se não, tão boa música, para espantar para longe aqueles indesejáveis ruídos de walkmans com suas músicas de mau gosto, além de naturalmente inibir as insólitas conversas que tanto atrapalham minha leitura viajante.

Na terceira parada do trem, ao abrir das portas, dois homens de preto adentraram ao vagão e, com gestos e expressões de que faziam aquilo de forma contrariada, pediram ao casal de músicos que desembarcassem. Um sonoro “ah” de lamentação foi ouvido dentro do vagão provocando a repetição do gesto e expressão de contrariedade dos rapazes que não emitiram mais palavras.

Na Partida do trem, a conversa na plataforma, entre os seguranças e o casal me pareceu muito amistosa e cordial. Verdadeiramente, aqueles homens se sentiam constrangidos em cumprir suas ordens de retirar os músicos do trem.

A música está proibida!

Na estação seguinte, embarcaram dois adolescentes e uma criança com os rostos cobertos por uma tinta prata, distribuindo papeizinhos aos passageiros, caminhando apressadamente entre os passageiros e silenciosamente pedindo esmolas através das palavras impressas.

Desembarquei na primeira parada e fiquei na plataforma esperando o trem seguinte. Quem sabe no próximo não role um Chico qualquer?