sábado, 8 de agosto de 2020

Cem mil

 





            Cem mil.  
          "Vamos tocar a vida.” Enquanto a morte toca irremediavelmente as centenas de milhares de famílias, devastando, assim como o fogo, os tratores e asmotosserras devastam impiedosamente o Pantanal e a Amazônia, "tocar a vida" poderia soar como um alento, como um impulso para superar com resignação o inevitável diante de um inimigo tão invisível quanto poderoso. A doença que chega silenciosa, apesar de todo o alarde e alarme que soa desde a divulgação da primeira morte lá no longínquo oriente, por aqui, teve sua força negada e a prevenção, que se levada a sério, poderia ter evitado boa parte dessas mortes, foi relegada pelo negacionismo covarde em favor de manter a economia funcionando.



Túmulos no cemitério Vila Formosa, Lalo de Almeida/Folhapress
Túmulos no cemitério V. Formosa, Lalo de Almeida/Folhapress

Quem diz que temos de tocar a vida, toca a morte a toque de caixa. Os números não param de crescer diuturnamente. A "gripezinha" derruba, abate, consome e mata, enquanto o "tocador" toca tudo no sentido contrário. Enquanto médicos e cientistas pregam o distanciamento social como melhor meio de se evitar o contágio, o "tocador da vida" se mistura à sua claque alienada que tumultua e aplaude a todas as suas atitudes e falas tresloucadas. O "tocador" insiste em propagandear e gastar milhões com um medicamento, enquanto médicos e cientistas relutam que lhes enfiem goela a baixo a tal droga mais que duvidosa, de ineficácia e de pesados efeitos colaterais comprovados em estudos pelo mundo inteiro.

Mas, o que podemos esperar de alguém que se cerca de pessoas que esperam em algum momento dobrar alguma esquina de 90° na planície da terra?

O que se esperar de alguém que veta a obrigatoriedade do uso de máscara, favorecendo a grupos religiosos que o apoiam, enquanto o equipamento de proteção recomendado por médicos e cientistas é o único que pode estar ao alcance até dos menos favorecidos que, amontoados em seus barracos nas favelas, não têm como manter o distanciamento social?

Cem mil... e contando...

Mas, "e daí"? A economia não pode parar. "O desemprego matará mais do que a pandemia."

Enquanto isso, meu amigo perdeu sua mãezinha. Enquanto isso, meus colegas se afastaram do trabalho para poderem se tratar e lutar contra os estragos que o vírus causou em seus organismos.

Enquanto isso, por causa do distanciamento social que tentamos respeitar para preservá-la, minha mãezinha se foi, por outras causas que não a Covid, sem me dar seu colo e seu beijo molhado, numa longa despedida de vinte dias em que parecia dormir em meio a tantas mangueiras, aparelhos e fios.

Enquanto isso, o "tocador da vida" tocava a morte, se distraindo e se divertindo, montando os 300 cavalos de seu jet ski, sobre as águas tranquilas da famosa lagoa no Planalto Central.

Cem mil... e contando...

Mas, o que fazer? "Eu sou messias (em minúsculo, mesmo), mas não faço milagres!"

Do "tocador da vida" não esperarei nada. Nem mesmo que nomeie um ministro que entenda de saúde para cuidar da saúde. O "tocador da vida" continuará tocando a morte, e ela, ou todas elas, lhe pesarão sobre os ombros, já que ali, nem com uma escavadeira de garimpo ilegal, poderá se encontrar consciência.

15 comentários:

  1. Mais um belo texto e reflexão, a leveza das letras, contrasta com a dureza da realidade, enquanto isso, mais uma morte, mais um lamento...

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    1. Obrigado, meu compadre. E a gente não pode se conformar, nem calar.

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  2. Verdades amigo, e o o pior é que estamos normalizando, aceitando, engolindo,cem mil mortes em cinco meses...

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    1. Obrigado pela interação. Não podemos normalizar.
      Mas não sei quem és. Estás incógnito(a)

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  3. Profundo e verdadeiro, com o jeito brasileiro, continuamos rindo o tempo inteiro, achando que a vacina vira até janeiro, enquanto isto as valas vão sendo abertas pelo coveiro .. Acorda povo brasileiro!!!

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    1. Curti teu comentário. Verdadeiro, brasileiro, inteiro, janeiro, coveiro... vamos tentando acordar.
      Obrigado, mas não consigo saber que é. Incógnita.

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  4. Excelente texto. 👏🏿👏🏿👏🏿

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    1. Obrigado. Só não sei quem és... rs rs ...
      Não assinaste.

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  5. Uma belo texto, Neri! Nos dá a dimensão exata de o "Tocador da vida" tem feito muito pouco para evitar as mortes.

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    1. Meu amigo , já estou "cem " espaços para indignações com o Gru real e seus discípulos. Ele já larapiou as possibilidades, em me surpreender. Mas isso não foi de tudo ruim. Hoje reflito em paz , cem ira.

      Minha mãezinha cem pisar sequer na calçada, foi contaminada por esse vírus potente. E sofreu um pouco com a incapacidade parcial em respirar e o cansaço que a limitava. Sua vida saudável e sem comodidades, foi uma arma para a cura. Assim como o azitromicina e predinisona. Cem fazer uso do tal remédio , aquele do garoto propaganda.

      É uma pena não nos juntarmos neste momento, a cem mil pessoas na Paulista. E mostrarmos a essa extrema direita de fascitoides,nossa repugnância por esse cem humanidade, cem inteligência, cem moral.

      E assim como Van Gogh, você meu amigo , desfila sua arte em momento de dores. Com seus adjuntos adverbiais, metáforas, e etc.

      E eu, propositalmente, troquei os (s) dos cem. Assim como o palhaço sem graça do Planalto, troca o s do nosso Brasil pelo z do seu Gru Sam.

      Grande abraço e parabéns!

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    2. É isso, meu amigo. Indignação. Obrigado pela interação.

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