Diante da onda de frio e das mortes de moradores de rua nos últimos dias, me ocorreu a lembrança deste texto publicado em 2017.
Por onde e como andará aquela criança e sua caixa de papelão?
O peito aperta
Já
é sexta-feira. O relógio caminha para marcar uma hora e quinze minutos
da madrugada. Acabei de sair de meu trabalho. O termômetro no canteiro
central da avenida marca 13°. O menino carrega junto ao corpo, com certa
dificuldade, uma caixa de papelão. A seu lado outras três crianças
pouco mais velhas que ele, e uma jovem mulher carregando no colo outra
criança. Cada qual portando sua caixa ou seu pedaço de papelão.
Depois
de subirem aos pulos a escada que leva à passarela da estação do Metrô,
parecem discutir algo sobre um futuro muito próximo. A jovem mulher, a
qual o menino chama de mãe, caminha na direção da estação, enquanto as
três crianças maiores caminham em sentido contrário na direção da rampa
de acesso às ruas circunvizinhas. O menino, na inocência de seus seis ou
sete anos, estanca entre os dois caminhos. A mãe, com seu protegido
bebê envolto em um surrado cobertor azul, encosta no parapeito e após
avistar pessoas que dormem como indigentes na calçada sob a marquise da
estação, resolve voltar. Parece querer juntar-se ao grupo.
O vento frio castiga as faces descobertas. As crianças fazem um ligeiro
burburinho na entrada da rampa, enquanto aguardam a decisão que parece
ser a mais importante do dia. A jovem mãe chama para si o menino, ainda
sem a devida convicção de que rumo tomar, e ameaça partir deixando-o
para trás enquanto ele teima em não seguí-la. As outras crianças, já
impacientes, chamam, aos gritos, os dois que ali permanecem no impasse.
O pequeno se vira e abraçado à sua pequena caixa de papelão, olhos
marejados, lábio inferior arriado e o rostinho que manifesta a mesma
contrariedade do garotinho que na frente de uma loja de um fino shopping
da zona sul, não aceita outro brinquedo se não aquele de sua escolha,
diz, com voz embargada e um profundo sentimento:
- Não quero dormir ali!
A mãe o puxa pelo braço, a caixa cai, ele a retoma e os dois seguem em
direção aos outros e descem a rampa. Nem lá, nem cá. De concreto mesmo,
somente as caixas e os pedaços de papelão, que servirão de colcha e
colchão para aquecer as pequenas almas na dura e fria madrugada da
metrópole São Paulo.
Sigo meu caminho. O peito aperta, os olhos molham e uma angústia
incomoda meu pensamento. Meto a mão no bolso, pego a chave do carro e
dirijo por doze quilômetros com o vento cortante quebrando no
para-brisa. O peito aperta. Em casa, abro a porta do quarto, e muito bem
protegido por um grosso cobertor, meu pequeno dorme com a paz da
inocência estampada no rosto.
No meu quarto, deito junto à minha esposa, puxo a ponta do cobertor e
entrelaço minhas pernas geladas nas suas muito bem aquecidas. Ela se
mexe inconsciente, resmunga algo ininteligível e se vira. Beijo-lhe o
rosto quente, viro de lado e não durmo. O peito aperta.
Triste a vida dos moradores de rua. Cada um com sua história de sofrimento e dor. E quando envolve criança então, o coração aperta mais. Como espelhar nesta criança com o seu papelão um futuro melhor para esta família? Como os objetivos das pessoas são diferentes: Enquanto Direita e Esquerda brigam por poder, esta família só quer um pedaço de pão e um lugar quente para dormir numa noite congelante.
ResponderExcluirMais que isso, além, ou mais do que ser falta de vontade política de E ou D, o que pesa é a falta de humanidade, como a expressada pela 1a dama de SP, ao dizer que não se deve alimentar a essas pessoas.
ExcluirO Frio dói na pele, dói a na alma e congela o coração...
ResponderExcluirE são muitos corações congelados... e muitos que nunca deveriam.
ExcluirJesus! É de doer na alma.
ResponderExcluirÉ mesmo, de doer.
ExcluirSempre penso que fome já dói, imagina a fome e o frio.
ResponderExcluirDolorido demais, e a gente fica impotente diante de tanta mazela.
ExcluirNeri, o seu texto nos tira o coberto quentinho de nossas consciências que passaram a naturalizar absurdos como esse. Enquanto uma sociedade que produz tantas riquezas, não dá para aceitar que em pleno século XXI pessoas tenham que dormir na rua, expostas à condições tão adversas como o frio. Situações como essa exigem uma ação coletiva que passa pelo âmbito da politica, do governo. Entretanto, diante do descaso dos governantes, "o peito aperta" porque nos colocamos no lugar daquele semelhante que sofre, "o peito aperta" porque sabemos que poderíamos e deveríamos fazer muito mais do que estamos fazendo.
ResponderExcluirPenso que é justamente o que falta à classe política. Empatia. Um mínimo já poderia fazer alguma diferença.
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