quinta-feira, 14 de maio de 2020

14, o dia seguinte

Depois de passar o dia de ontem lendo reportagens, colunas e opiniões, sinto como se estivesse vivendo, ano pós ano, todos os dias como se fosse sempre o dia seguinte. Contudo, se esta é minha sensação, penso que é exatamente assim que se sente a maioria dessa população “miscigenada”.
Vivemos, desde os últimos anos do final do século XIX, a sensação de estarmos sempre, e ainda presos aos grilhões abertos e às indiferenças do dia seguinte. Pior para nós que, nenhum milagre da ciência, tão relegada nos tempos atuais, é capaz de nos oferecer uma pílula contraceptiva para essa indesejada e permanente gestação que se renova a cada maio.
Continuamos gestando, a contragosto, como estuprados que fomos, carnal e espiritualmente, a indiferença do estado e a negação da história por parte de membros e do próprio governo ao longo de tantos anos. Com raríssimas e minguadas exceções, como a adoção de uma ou outra política de reparação através de cotas, a dívida, principalmente moral, está a anos-luz de ser quitada. E agora, como se fossem insuficientes todos os tipos de discriminação e violência contra o corpo, a cultura e "as almas da gente negra"*, a negação de nossa história verte também da mente e da boca de alguém que se auto intitula "negro de direita". Mais uma vez a subversão e a negação da história.
 Onde é que estavam os negros, os pobres, os trabalhadores e todos os que viviam à margem dos direitos quando da Assembleia Nacional Francesa, o berço de tal polarização? Por Deus ou Oxalá! Ah, claro! Um "negro de direita", claramente, só pode ser um aristocrata, banqueiro, fazendeiro ou coisa que os valha.
 É evidente que não se pode negar o efeito da lei. Apesar de ter sido posta em prática, pela pressão de tantas outras forças, até externas, ela está aí. Está, mas é como se não existisse. Pergunte ao preto!
 Dito isto, é também evidente que não se pode menosprezar nem desdenhar da luta dos que foram os verdadeiros protagonista na luta pela abolição como Luís Gama, Dragão do Mar, Maria Firmina, André Rebouças e tantos outros. É evidente também que nenhum "negro de direita" poderá subverter a história de Zumbi, achincalhando, escarnecendo um dos principais representantes da resistência negra, atribuindo-lhe a pecha de “falso herói”.
Se a ciência ainda não desenvolveu o contraceptivo para a gestação desse ódio que nos persegue desde nossos ancestrais, mais uma vez, por Deus ou Oxalá, que me sirvam ao menos um antiácido para que, e, se não puder digerir, vomite de jorro, porque eu, nem ninguém é obrigado a engolir tamanhos desvarios, desatinos e disparates de um falso negro.


*“As almas da gente negra” -  DU BOIS, W. E. B.

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