segunda-feira, 4 de maio de 2020

Cinquentei



Para não me eximir das modernidades difundidas através das redes sociais, me rendo aqui aos novos neologismos, com perdão da redundância, tão disseminados hoje em dia quanto o “sextou” dos animados memes que perpassam todas as sextas feiras, infalivelmente acompanhados de uma linda, suada e instigante garrafa de cerveja ou de uma transbordante caneca de chopp.
Refém que sou do meio que me envolve, cinquentei.
Como a atualidade e os acontecimentos dos últimos dias, ou meses, nos forçam a incorporar novas palavras ao nosso precário vocabulário, empregarei também uma já muito utilizada e repetida por autoridades e entendidos na esperançosa expressão: achatamento da curva.
Sim. A curva. Talvez eu tenha atingido com esse meu meio século vivido o pico da minha curva. Confesso, também esperançoso, que tenho, com muito otimismo, o desejo de que essa curva só finde lá pelos anos 70 vindouros, e que meu ciclo se complete num século.
Em meio a tantas más notícias e ao tormento que se tornou essa pandemia que vem dizimando milhares de pessoas no mundo, a festa que havia sido planejada para reunir os amigos e a família numa grande confraternização teve de ser cancelada. Pelo menos adiada. Quem sabe no próximo abril a gente não possa retomar o projeto e cobrar com juros e correção os beijos, os abraços e o carinho que deixaram de ser dados e recebidos.
Contudo, a data não passou em branco. Meu cinquentenário teve seus momentos marcantes. Comemoramos com os amigos e parentes à distância, através de uma live pela rede social. Filhos e esposa me colocaram diante da câmera do celular para cantar, auto acompanhado por meu violão pouco aprimorado, rústico, as músicas que tantas vezes cantamos juntos nos diversos encontros, churrascos e sítios. Foi muito especial receber o carinho de todos através da interação e das inúmeras mensagens, e ainda ter sido visto e ouvido, de acordo com as curtidas, em Brasília, Rio de Janeiro, Portugal e até nos Estados unidos por velhos e novíssimos amigos de tão, tão distante, como diria um velho ogro.
No dia anterior, tentei matar a saudade da minha velhinha através de uma ligação. Ah, como é bom poder ouvir as suas reclamações tão resolvíveis! Ela, que antes da pandemia andava meio preguiçosa, passando grande parte do dia acomodada em seu sofá, assistindo às inocentes aventuras de Dora, agora se queixa, e com razão, de não poder sair para fazer sua caminhadinha na praça. Depois de desligar, senti uma angústia se apoderar de meu peito. Chorei silencioso. Já há alguns dias não a via.
Pela manhã do dia 28, fui vê-la. Sim. Sabia que para preservá-la de um possível contágio deveria me manter distante. A janela de sua pequena sala dá para o corredor que vem da rua. Avancei meu rosto no vão da janela e, como esperava, lá estava ela, sentada em seu sofá, assistindo a um desenho animado qualquer. Não vi se era a Dora. Sorriu largamente. Me mandou entrar. Não entrei.
A felicidade em me ver pessoalmente, expressa em seus vibrantes olhos azuis e em suas interjeições baianamente sotaqueadas, me inundou os olhos. Ligações não bastam. Não pude abraçá-la. Não pude beijá-la, nem pude, como algumas vezes faço, colocar minha cabeça em seu colo, ainda que cinquentão. Lhe perguntei se sabia que dia era. Ela fez ar de surpresa. Se lembrou. Seus 81 anos às vezes lhe passam uma rasteira com as datas. Não pôde me abraçar. Não pôde me beijar, nem me dar seu colo no dia do meu aniversário. Me dei por contente com o amor que me tocava e que nos move à distância.
Cinquentei.

4 comentários:

  1. Texto emocionante e lindo, lindo, lindíssimo!!!!������

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    1. Obrigado, amiga. Assim, vamos atravessando esse pântano tenebroso. Com o carinho compartilhado. Obrigado pelo seu.

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  2. Que texto lindo.Parabens pelos seus 50 anos e que venham muitos outros com grandes alegrias

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    1. Obrigado. Aqui aparece como desconhecido, mas retribuo o carinho. Obrigado.

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