Se fosse em outros tempos, aqueles famigerados anos
dominados pela ditadura, em que a liberdade de expressão simplesmente deixou de
existir, e em que os grandes jornais, censurados pelo absurdo, publicavam
receitas de bolos em lugar de notícias, poderia até fazer um pequeno esforço
para tentar entender as cenas que vêm se tornando rotineiras no cotidiano
paulistano.
Dia desses, a caminho do trabalho, matando o tempo
do trajeto com a leitura de alguns ensaios sobre silêncio e prosa, o silêncio
sempre desejado, mas nunca alcançado para qualquer leitura dentro do transporte
público, desta feita, foi inundado pelo som que, logo nos primeiros acordes,
reconheci o mestre Luiz Gonzaga “numa sala de reboco”, transbordando
poesia, forjado entre os arcos e as cordas de dois violinos.
Um rapaz moreno com seus dreadlocks fazendo dupla
com a mocinha branca, também de dreads e roupas hippies. Viajavam no centro do
vagão do metrô, espalhando música aos ouvidos dos passageiros.
Ao parar na primeira estação, a música parou e um
pequeno discurso se ouviu sobre a dificuldade de se viver de música no país.
Uma moça que desembarcou, antes de sair, abaixou-se e depositou uma cédula no
chapéu colocado junto a uma das portas.
Logo que a porta se fechou e o trem seguiu viagem os
violinos retomaram a música. Agora, Vivaldi espalhava Primavera dentro
do vagão em silêncio. O silêncio parecia referendar a iniciativa dos músicos.
Melodia e harmonia em perfeita sintonia.
Na parada da segunda estação não teve discurso.
Mais duas pessoas que desembarcaram deixaram, antes de sair, a sua pequena
contribuição aos amadores e amantes músicos.
Fechei o livro que lia e fiquei aguardando o que
viria até a próxima estação.
O trem partiu e desta vez o ecletismo se confirmou
na vibração das clássicas cordas. Simplesmente, Satisfaction. Os dois
violinos passeavam dentro do vagão tirando sorrisos e expressões de admiração
dos rostos surpresos dos passageiros. Admiração e espanto meus também. Em menos
de dez minutos de viagem eu já ouvira Luiz Gonzaga, Vivaldi e Rolling Stones!
Confesso que pensei não poder haver nada melhor
dentro de um vagão de metro, se não, tão boa música, para espantar para longe
aqueles indesejáveis ruídos de walkmans com suas músicas de mau gosto, além de naturalmente
inibir as insólitas conversas que tanto atrapalham minha leitura viajante.
Na terceira parada do trem, ao abrir das portas,
dois homens de preto adentraram ao vagão e, com gestos e expressões de que
faziam aquilo de forma contrariada, pediram ao casal de músicos que
desembarcassem. Um sonoro “ah” de lamentação foi ouvido dentro do vagão
provocando a repetição do gesto e expressão de contrariedade dos rapazes que
não emitiram mais palavras.
Na Partida do trem, a conversa na plataforma, entre
os seguranças e o casal me pareceu muito amistosa e cordial. Verdadeiramente,
aqueles homens se sentiam constrangidos em cumprir suas ordens de retirar os
músicos do trem.
A música está proibida!
Na estação seguinte, embarcaram dois adolescentes e
uma criança com os rostos cobertos por uma tinta prata, distribuindo
papeizinhos aos passageiros, caminhando apressadamente entre os passageiros e
silenciosamente pedindo esmolas através das palavras impressas.
Desembarquei na primeira parada e fiquei na
plataforma esperando o trem seguinte. Quem sabe no próximo não role um Chico
qualquer?