sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Ligação Direta

 


Dizem que o tempo sara as feridas. Pode ser. Mas jamais poderá apagar as cicatrizes. E ainda bem que não. As cicatrizes ficarão para sempre, e por baixo delas as lembranças ficarão num eterno stand by, só esperando um clique que as aflorem.

Talvez o meu interruptor, o meu liga-desliga, tenha emperrado na posição ligado. Assim, e isso pode explicar, nos últimos dois meses, quase três, algumas lembranças estejam on, sem qualquer intermitência.

Chego a quase sentir o cheiro do café, ao esquecimento sobre a chama do fogão, torrando no fundo do bule, enquanto as roupas eram postas a quarar no quintal. E aquele cheiro também era um clique a transportar pensamentos direto para as pequenas roças da Bahia.

Chego quase a escutar, como se estivesse à beira rio a ouvir lavadeiras, as melodias redondas dos cânticos evangélicos a preencher o silêncio da casa que, em tempos já longínquos, não tinha o clique do rádio, nem da TV.

Vejo a todo momento, ainda que em flashes, como se um clique disparasse a retina ou o diafragma, os cabelos prateados se derramando sobre frágeis ombros, numa única trança que há muito tempo já não era tão espessa.

Não me furto de querer sentir a todo momento o caminhar vagaroso dos dedinhos idosos, passeando, buscando caminhos entre os cachos, quase dreads, quando ainda os tinha, enquanto deitava a cabeça em seu colo, ao som das inocentes aventuras de Dora, a passar indiferente nos momentos em que a TV falava sozinha.

Agora, quem fala sozinho sou eu. São tantas boas lembranças! Mas também são todas, ainda, feridas que não cicatrizaram.

Hoje, 11 de setembro, todas essas lembranças seriam renovadas, duplicadas. Hoje, ela completaria 82 anos, e seu sorriso me inundaria os olhos. Ainda me despeço todos os dias, como se essa despedida não tivesse fim, e talvez não tenha, e vivo meus dias sob a sua bênção dispensada no carinho úmido de seu beijo.

Sob minha pele, sob a queloide das cicatrizes, não haverá mais clique algum. Nenhum botão, nem interruptor. Nada de interrupção.

Sob meus poros, sob a carne dura que tenta acobertar sentimentos, as lembranças estarão sempre on, numa eterna ligação direta, no entrelaçamento dos dois fios, amor e saudade.