quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Pelé: plenitude


Quando um outro gênio morreu, eu escrevi que ele não  era Deus. Hoje, morreu o maior de todos e a sensação é  a de que este só morreu porque, assim como aquele, também não  era. Talvez tenha herdado sob sua pele preta alguns dotes e talentos inerentes apenas a alguma divindade. Talvez, tal qual um semideus gerado por uma ninfa, não tenha se banhado no Estige, não tenha herdado a imortalidade, e a flecha tenha lhe atingindo justamente onde não tinha proteção.

No entanto, a sua imortalidade não está vinculada ao seu perecível corpo que agora voltará ao pó. Sua imortalidade estará sempre ligada ao imponderável que era ver pernas, tronco, braços e cabeça  se moverem em sintonia, como a ouvir sinfonia, enquanto seu entorno convulsionava apavorado sem distinguir direção, atitude ou razão.

A bola colada aos pés lhe era fiel. Em que outros pés encontraria melhor tratamento? Em que outros pés o carinho, o amor e o respeito lhe diriam tanto. Resvalando a grama ou em precisas viagens aéreas o melhor acolhimento estava sempre próximo aos seus cadarços bem amarrados, ou na recepção calorosa do peito que a fazia dormir e sonhar.

Ele se fez Rei. Foi consagrado por si. O mundo o reverenciou, e essa reverência se manifestará a cada emissão de seu nome, a cada frase relembrada, a cada um de seus mais de 1.200 gols que a TV não  cansará de reprisar.

Não  foi Deus, e por isso falho como cada um de seus súditos. Talvez por isso o homem falava da personagem e também  o contrário. Ele há  muito já  não  desfilava e deslumbrava pelos campos do mundo, mas o legado e a referência se manterão vivos. Um substantivo que virou adjetivo. Um nome que virou sinônimo de magistralidade, de virtuosidade e penitude.