domingo, 30 de agosto de 2020

Lavrador ou Garí?

 

A televisão mostrou ainda há pouco em dois telejornais, o que anda acontecendo com o homem e suas aventuras espaciais. É realmente incrível como o ser humano desenvolveu essa capacidade de inventar tecnologias e a partir delas sair por aí desbravando territórios desconhecidos. Ainda agora, pude assistir à cena de três astronautas dentro de uma estação espacial, a milhares de quilômetros da Terra, devorando algumas folhas de alface que eles mesmos cultivaram dentro da própria estação, até com alguma satisfação estampada no rosto, se é que uma alface espacial possa ser tão especial.

Imagino que agora o homem quer implantar a agricultura espacial. Pois então, eu, sonhador de tantos sonhos impossíveis, pus-me a pensar se não seria viável, tal qual na linda canção de Gilberto Gil, “amarrar o meu arado a uma estrela e virar um lavrador louco do espaço, um camponês solto no céu”.

Ah! Se Deus me desse essa chance, embarcaria na primeira espaçonave da NASA com os bolsos cheios de mudas e sementes para plantar entre uma estrela e outra, os meus pezinhos de pimenta, minhas sementinhas de coentro, minhas mudinhas de rosas e entre tantas outras, plantar, bem na frente do meu pedacinho de céu, um lindo Ipê amarelo. Fincar estacas na sombra, amarrar entre elas uma rede generosa, me deitar e apreciar, sem pressa, as folhas verdejarem, amarelarem, secarem, caírem e darem lugar às lindas flores amarelas que sempre encheram meus olhos de alegria.

O céu seria ainda mais lindo com suas noites estreladas e repletas de flores multicoloridas a enfeitar seus recantos, mas em seguida, outro canal, outro telejornal, acabou me trazendo de volta à Terra ao deixar bem claro que nem tudo são flores ou alface nesse canteiro espacial.

Agora, as autoridades já estão preocupadas com a quantidade de lixo no espaço. Como assim? Lixo no espaço? Isso mesmo! As autoridades mundiais estão preocupadas porque a órbita da Terra está repleta de milhões de fragmentos de satélites e espaçonaves. Dizem que estes objetos trafegam a esmo no espaço a uma velocidade tão grande, que até um simples parafuso pode, ao se chocar com alguma espaçonave, causar um acidente sem proporções. Alguns cientistas já estudam e tentam desenvolver uma espécie de braço, mão mecânica, ou um tipo de imã que recolha esses objetos perdidos quando da eminência de um choque indesejado.

De lavrador terei de passar a gari. Terei de deixar minha lavoura entre estrelas para, a bordo de um caminhão espacial de lixo, sair flutuando na falta de gravidade, recolhendo, um a um, os dejetos orbitais, para que numa eventualidade esses não venham destruir minhas pimentinhas, meu coentro, nem, muito menos o meu Ipê amarelo.

E não é mesmo incrível como o ser humano desenvolveu essa capacidade de inventar tecnologias e de desbravar territórios desconhecidos? Sim, é. E é tão capaz, que no decorrer do último milênio, sempre em nome do desenvolvimento, foi desbravando, desmatando e poluindo a terra. Em nome de tal globalização, foi desbravando mares e rios, e deixando suas pegadas flutuantes de óleo espalhadas por toda água doce ou salgada. Em nome de famigerada mobilidade, foi desbravando matas, abrindo ruas, estradas e avenidas, atapetando tudo de asfalto, e cobrindo o céu com o cinza vomitado de seus tecnológicos automóveis.

Aos poucos matam a terra, secam as águas, extinguem o ar, e agora, também em nome da ciência, poluem e entopem de lixo o espaço sideral.

Quero minha lavoura de volta. Quero colher minha alface e sentir o cheiro de terra jorrar de suas raízes, para não acabar feito o que diz a canção: “Quanto mais longe da terra, tanto mais longe de Deus.”.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Onda de frio

 

Diante da onda de frio e das mortes de moradores de rua nos últimos dias, me ocorreu a lembrança deste texto publicado em 2017. 
Por onde e como andará aquela criança e sua caixa de papelão?
 
 
O peito aperta
 
Já é sexta-feira. O relógio caminha para marcar uma hora e quinze minutos da madrugada. Acabei de sair de meu trabalho. O termômetro no canteiro central da avenida marca 13°. O menino carrega junto ao corpo, com certa dificuldade, uma caixa de papelão. A seu lado outras três crianças pouco mais velhas que ele, e uma jovem mulher carregando no colo outra criança. Cada qual portando sua caixa ou seu pedaço de papelão.

Depois de subirem aos pulos a escada que leva à passarela da estação do Metrô, parecem discutir algo sobre um futuro muito próximo. A jovem mulher, a qual o menino chama de mãe, caminha na direção da estação, enquanto as três crianças maiores caminham em sentido contrário na direção da rampa de acesso às ruas circunvizinhas. O menino, na inocência de seus seis ou sete anos, estanca entre os dois caminhos. A mãe, com seu protegido bebê envolto em um surrado cobertor azul, encosta no parapeito e após avistar pessoas que dormem como indigentes na calçada sob a marquise da estação, resolve voltar. Parece querer juntar-se ao grupo. 

O vento frio castiga as faces descobertas. As crianças fazem um ligeiro burburinho na entrada da rampa, enquanto aguardam a decisão que parece ser a mais importante do dia. A jovem mãe chama para si o menino, ainda sem a devida convicção de que rumo tomar, e ameaça partir deixando-o para trás enquanto ele teima em não seguí-la. As outras crianças, já impacientes, chamam, aos gritos, os dois que ali permanecem no impasse. 

O pequeno se vira e abraçado à sua pequena caixa de papelão, olhos marejados, lábio inferior arriado e o rostinho que manifesta a mesma contrariedade do garotinho que na frente de uma loja de um fino shopping da zona sul, não aceita outro brinquedo se não aquele de sua escolha, diz, com voz embargada e um profundo sentimento: 
- Não quero dormir ali! 

A mãe o puxa pelo braço, a caixa cai, ele a retoma e os dois seguem em direção aos outros e descem a rampa. Nem lá, nem cá. De concreto mesmo, somente as caixas e os pedaços de papelão, que servirão de colcha e colchão para aquecer as pequenas almas na dura e fria madrugada da metrópole São Paulo. 

Sigo meu caminho. O peito aperta, os olhos molham e uma angústia incomoda meu pensamento. Meto a mão no bolso, pego a chave do carro e dirijo por doze quilômetros com o vento cortante quebrando no para-brisa. O peito aperta. Em casa, abro a porta do quarto, e muito bem protegido por um grosso cobertor, meu pequeno dorme com a paz da inocência estampada no rosto.

No meu quarto, deito junto à minha esposa, puxo a ponta do cobertor e entrelaço minhas pernas geladas nas suas muito bem aquecidas. Ela se mexe inconsciente, resmunga algo ininteligível e se vira. Beijo-lhe o rosto quente, viro de lado e não durmo. O peito aperta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

E ela só tem dez anos

 

Ando de mau humor. Pouca coisa tem me feito sorrir nos últimos meses. Há tempos não consigo dar uma boa gargalhada. Os programas humorísticos continuam suas sagas nos canais de TV, mas me provocam apenas efêmeros risos que se esvaem assim que entra o comercial. O fácil acesso ao controle remoto me faz navegar por outros canais. Invariavelmente, meus dedos param num programa jornalístico, e aí fico preso ao noticiário e já não volto ao humorístico, nem tampouco ao bom humor.

          Não sei se bom ou ruim, se correto ou não, mas ainda me choco e me espanto com certos atos e atitudes desumanas que o ser "humano" é capaz de praticar. Instintos primitivos, ou não, como aceitar resignado a possibilidade, realidade, de uma criança, e ela só tem dez anos, ser sistematicamente, por meses, violentada dentro da própria família sem que alguém de seu convívio perceba um mínimo de alteração em seu comportamento? Com certeza, há algo de muito errado em nossas relações maternais, paternais e fraternais, para que não notemos, ao menos nos olhos, alguém que pede socorro em silêncio. Talvez estejamos olhando muito para dentro de nós. Talvez estejamos concentrando nosso olhar na figura ao centro do espelho, sem enxergar os pequenos vultos que podem estar acenando ao fundo.

          A humanidade está morta. Se não, convalesce respirando por aparelhos. De outra feita, não veríamos auto denominados "cristãos", na porta do hospital, bradando odiosamente contra familiares e médicos que trabalhavam para resgatar o fio de dignidade a que a pobre criança tem direito. Foi violado o seu direito à privacidade, à preservação de sua imagem e de seus dados, covardemente divulgados em redes sociais por uma extremista radical que se julga defensora da vida e dos bons costumes.

          Não bastasse a hedionda e rotineira violação a que foi submetida, ainda tem de enfrentar, decidida, tais "cristãos" que, sem direito algum, se colocam com pretenso poder de violar o seu sagrado e legal direito sobre seu pequeno corpo de criança. Criança que, segundo o juiz que lhe concedeu o direito, ao saber da gravidez, "entra em profundo sofrimento, grita, chora e afirma não querer levar a gravidez adiante".

          Os tais "cristãos" em suas hipócritas manifestações em "favor da vida", ao condenar a família e os médicos, os chamando de assassinos, transformam a vítima, e ela só tem dez anos, em criminosa.  Enquanto isso, esses mesmos "defensores da vida" relegam ao esquecimento o verdadeiro, repugnante e hediondo crime de estupro.

          Meu bom humor não voltará tão cedo. Nos intervalos de qualquer programa, tudo que passará por minha cabeça é que ela só tem dez anos.

sábado, 8 de agosto de 2020

Cem mil

 





            Cem mil.  
          "Vamos tocar a vida.” Enquanto a morte toca irremediavelmente as centenas de milhares de famílias, devastando, assim como o fogo, os tratores e asmotosserras devastam impiedosamente o Pantanal e a Amazônia, "tocar a vida" poderia soar como um alento, como um impulso para superar com resignação o inevitável diante de um inimigo tão invisível quanto poderoso. A doença que chega silenciosa, apesar de todo o alarde e alarme que soa desde a divulgação da primeira morte lá no longínquo oriente, por aqui, teve sua força negada e a prevenção, que se levada a sério, poderia ter evitado boa parte dessas mortes, foi relegada pelo negacionismo covarde em favor de manter a economia funcionando.



Túmulos no cemitério Vila Formosa, Lalo de Almeida/Folhapress
Túmulos no cemitério V. Formosa, Lalo de Almeida/Folhapress

Quem diz que temos de tocar a vida, toca a morte a toque de caixa. Os números não param de crescer diuturnamente. A "gripezinha" derruba, abate, consome e mata, enquanto o "tocador" toca tudo no sentido contrário. Enquanto médicos e cientistas pregam o distanciamento social como melhor meio de se evitar o contágio, o "tocador da vida" se mistura à sua claque alienada que tumultua e aplaude a todas as suas atitudes e falas tresloucadas. O "tocador" insiste em propagandear e gastar milhões com um medicamento, enquanto médicos e cientistas relutam que lhes enfiem goela a baixo a tal droga mais que duvidosa, de ineficácia e de pesados efeitos colaterais comprovados em estudos pelo mundo inteiro.

Mas, o que podemos esperar de alguém que se cerca de pessoas que esperam em algum momento dobrar alguma esquina de 90° na planície da terra?

O que se esperar de alguém que veta a obrigatoriedade do uso de máscara, favorecendo a grupos religiosos que o apoiam, enquanto o equipamento de proteção recomendado por médicos e cientistas é o único que pode estar ao alcance até dos menos favorecidos que, amontoados em seus barracos nas favelas, não têm como manter o distanciamento social?

Cem mil... e contando...

Mas, "e daí"? A economia não pode parar. "O desemprego matará mais do que a pandemia."

Enquanto isso, meu amigo perdeu sua mãezinha. Enquanto isso, meus colegas se afastaram do trabalho para poderem se tratar e lutar contra os estragos que o vírus causou em seus organismos.

Enquanto isso, por causa do distanciamento social que tentamos respeitar para preservá-la, minha mãezinha se foi, por outras causas que não a Covid, sem me dar seu colo e seu beijo molhado, numa longa despedida de vinte dias em que parecia dormir em meio a tantas mangueiras, aparelhos e fios.

Enquanto isso, o "tocador da vida" tocava a morte, se distraindo e se divertindo, montando os 300 cavalos de seu jet ski, sobre as águas tranquilas da famosa lagoa no Planalto Central.

Cem mil... e contando...

Mas, o que fazer? "Eu sou messias (em minúsculo, mesmo), mas não faço milagres!"

Do "tocador da vida" não esperarei nada. Nem mesmo que nomeie um ministro que entenda de saúde para cuidar da saúde. O "tocador da vida" continuará tocando a morte, e ela, ou todas elas, lhe pesarão sobre os ombros, já que ali, nem com uma escavadeira de garimpo ilegal, poderá se encontrar consciência.