quarta-feira, 25 de novembro de 2020
Maradona não é Deus
Já não tenho mais o velho álbum de figurinhas da copa de 1982. Os dentistas devem ter tido muitas cáries para tratar naquele ano. As desejadas figurinhas dos grandes craques daquela copa vinham dobradas sob as embalagens do açucarado Ping-Pong, o chiclete. Foi ali que vi pela primeira vez, num pequeno pedaço de papel, não sei se manteiga ou de seda, a imagem daquele que faria e viraria história. "Dios"
No campo, os movimentos que poderiam ser descritos como friamente calculados, na verdade eram frutos dos mais livres improvisos. A bola colada ao pé parecia sorrir, correndo junto à grama, sob a majestosa condução de um pé esquerdo que aparentava ser único. Único na habilidade e na intimidade no trato do couro. Único também, pela suposta inabilidade de seu par, que jocosamente alguns diziam que servia apenas para subir no ônibus. Qual o quê? A perna direita era exatamente o ponto necessário de equilíbrio para as invenções que o criativo e irrequieto cérebro ditava ao corpo que executasse. E era mágico.
Mas ele não era mágico, apesar do uso e da prática de tantos truques ludibriantes. Ele não era feiticeiro, mas o feitiço ficava no ar enquanto parecia flutuar na diferença que saltava aos olhos diante de seus iguais. Seu feitiço, tal qual uma forte beberagem, tirava o povo de si, enquanto bocas abertas e olhos arregalados bem traduziam a visão do inacreditável.
Ele não era Deus, ainda que alguns insistam em atribuir-lhe certos milagres. Nem ao menos um filho de Peleu e Tétis. Mas era o mais humano de todos os mitos que já povoaram o imaginário da raça. Talvez tenha sido essa humanidade, por vezes reverenciada e também criticada, o seu calcanhar não banhado nas águas do Estige.
Humano que era, ao pó voltou. Ficará no imaginário e nas imagens que a tecnologia nos permite. Sob o estigma de deus, a sua humanidade fez a si, e talvez, só a si, o que o tamanho do mito que era lhe permitiu.
Que descanse em paz, agora sim, sob a proteção de "la mano de Dios".
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Consciência Escrita
"Não sei porque razão me causa impressão ver um preto escrever. Apraz-me que falem a nossa língua com propriedade e sem sotaque. Contudo, sinto como uma invasão o domínio que eles possam ter da escrita."
O colonizador se sentiu ameaçado por que viu que não era exclusividade sua a aquisição de conhecimento. As tradições ancestrais e milenares transmitidas oralmente através dos séculos, passariam a ter seus registros perpetuados através da escrita, e todo o conhecimento, que também não era exclusividade europeia, estaria passando de mãos em mãos, de cabeça a cabeça, através das gerações.
O analfabetismo sempre foi arma de dominação das elites. O sistema escravocrata que explorou por séculos a população negra tirada do ventre africano, se manteve por tanto tempo, porque esta dominação violenta impedia a busca e difusão do conhecimento, desde os podres porões dos navios, até o apartamento da senzala.
Todos sabemos, apesar de tentarem nos fazer crer no contrário, que o fim da escravidão institucionalizada não nos foi concedida como uma bênção de mão beijada. Além de todas as pressões internacionais para que se abolisse, já tardiamente, a escravidão no Brasil, o último pais do ocidente a fazê-lo, a luta dos abolicionistas negros foi fundamental neste sentido.
Para ilustrar bem a participação e envolvimento dos negros em sua própria luta, podemos citar alguns nomes como o de Luiz Gama, que aprendendo a ler e escrever apenas aos 17 anos, reivindicou sua liberdade, já que havia nascido livre e feito escravo, e que mais tarde, acabaria libertando centenas de escravos, entrando com ações na justiça. Não menos importante, André Rebouças, que requereu não só o fim da escravidão, mas também que os escravos libertos tivessem acesso à terra além de direitos.
A mulher negra, como nunca foi diferente, empregou sua força e inteligência e também colaborou muito com essa luta. Maria Firmina dos Reis, a primeira escritora abolicionista, em seu romance "Úrsula", tido como o primeiro romance a abordar tal tema por alguns historiadores, utilizou de seus personagens negros para contestar o sistema escravocrata.
Como vimos nos exemplos citados, ínfimos diante de tantos outros, os negros lutaram por liberdade e não ficaram de joelhos esperando uma dádiva do céu. A consciência despertada, principalmente, pelo conhecimento adquirido através da alfabetização, dos estudos e da leitura, juntou-se a outros fatores que levaram à destituição da escravidão institucionalizada.
Isso era tudo o que temia o Sgto. Germano. A consciência negra despertada e viva através do conhecimento. A história, o espaço, a cultura, as tradições, tudo abarcado dentro da leitura e da escrita negra. E como bem já disse Steve Biko, "a abordagem da consciência negra seria irrelevante numa sociedade igualitária, sem distinção de cor e sem exploração". Este não é o caso. E sobre a essência dessa Consciência Negra, Biko sentencia: "É a consciencialização por parte do negro da necessidade de se unir a seus irmãos em torno da causa da sua opressão - a negritude da sua pele - e de trabalharem como um grupo para se libertarem dos grilhões que os prendem a uma servidão perpétua."
E é por essas e por outras que escrevemos e não paramos de escrever. Isso é o que temem os "sargentos" do nosso cotidiano.
sexta-feira, 11 de setembro de 2020
Ligação Direta
Dizem que o tempo sara as feridas. Pode ser. Mas jamais poderá apagar as cicatrizes. E ainda bem que não. As cicatrizes ficarão para sempre, e por baixo delas as lembranças ficarão num eterno stand by, só esperando um clique que as aflorem.
Talvez
o meu interruptor, o meu liga-desliga, tenha emperrado na posição ligado.
Assim, e isso pode explicar, nos últimos dois meses, quase três, algumas
lembranças estejam on, sem qualquer intermitência.
Chego
a quase sentir o cheiro do café, ao esquecimento sobre a chama do fogão,
torrando no fundo do bule, enquanto as roupas eram postas a quarar no quintal.
E aquele cheiro também era um clique a transportar pensamentos direto para as
pequenas roças da Bahia.
Chego
quase a escutar, como se estivesse à beira rio a ouvir lavadeiras, as melodias
redondas dos cânticos evangélicos a preencher o silêncio da casa que, em tempos
já longínquos, não tinha o clique do rádio, nem da TV.
Vejo
a todo momento, ainda que em flashes, como se um clique disparasse a retina ou
o diafragma, os cabelos prateados se derramando sobre frágeis ombros, numa
única trança que há muito tempo já não era tão espessa.
Não
me furto de querer sentir a todo momento o caminhar vagaroso dos dedinhos
idosos, passeando, buscando caminhos entre os cachos, quase dreads, quando
ainda os tinha, enquanto deitava a cabeça em seu colo, ao som das inocentes
aventuras de Dora, a passar indiferente nos momentos em que a TV falava
sozinha.
Agora,
quem fala sozinho sou eu. São tantas boas lembranças! Mas também são todas,
ainda, feridas que não cicatrizaram.
Hoje,
11 de setembro, todas essas lembranças seriam renovadas, duplicadas. Hoje, ela
completaria 82 anos, e seu sorriso me inundaria os olhos. Ainda me despeço
todos os dias, como se essa despedida não tivesse fim, e talvez não tenha, e
vivo meus dias sob a sua bênção dispensada no carinho úmido de seu beijo.
Sob
minha pele, sob a queloide das cicatrizes, não haverá mais clique algum. Nenhum
botão, nem interruptor. Nada de interrupção.
Sob
meus poros, sob a carne dura que tenta acobertar sentimentos, as lembranças
estarão sempre on, numa eterna ligação direta, no entrelaçamento dos
dois fios, amor e saudade.
domingo, 30 de agosto de 2020
Lavrador ou Garí?
O céu seria ainda mais lindo com suas noites estreladas e repletas de flores multicoloridas a enfeitar seus recantos, mas em seguida, outro canal, outro telejornal, acabou me trazendo de volta à Terra ao deixar bem claro que nem tudo são flores ou alface nesse canteiro espacial.
Agora, as autoridades já estão preocupadas com a quantidade de lixo no espaço. Como assim? Lixo no espaço? Isso mesmo! As autoridades mundiais estão preocupadas porque a órbita da Terra está repleta de milhões de fragmentos de satélites e espaçonaves. Dizem que estes objetos trafegam a esmo no espaço a uma velocidade tão grande, que até um simples parafuso pode, ao se chocar com alguma espaçonave, causar um acidente sem proporções. Alguns cientistas já estudam e tentam desenvolver uma espécie de braço, mão mecânica, ou um tipo de imã que recolha esses objetos perdidos quando da eminência de um choque indesejado.
De lavrador terei de passar a gari. Terei de deixar minha lavoura entre estrelas para, a bordo de um caminhão espacial de lixo, sair flutuando na falta de gravidade, recolhendo, um a um, os dejetos orbitais, para que numa eventualidade esses não venham destruir minhas pimentinhas, meu coentro, nem, muito menos o meu Ipê amarelo.
E não é mesmo incrível como o ser humano desenvolveu essa capacidade de inventar tecnologias e de desbravar territórios desconhecidos? Sim, é. E é tão capaz, que no decorrer do último milênio, sempre em nome do desenvolvimento, foi desbravando, desmatando e poluindo a terra. Em nome de tal globalização, foi desbravando mares e rios, e deixando suas pegadas flutuantes de óleo espalhadas por toda água doce ou salgada. Em nome de famigerada mobilidade, foi desbravando matas, abrindo ruas, estradas e avenidas, atapetando tudo de asfalto, e cobrindo o céu com o cinza vomitado de seus tecnológicos automóveis.
Aos poucos matam a terra, secam as águas, extinguem o ar, e agora, também em nome da ciência, poluem e entopem de lixo o espaço sideral.
Quero minha lavoura de volta. Quero colher minha alface e sentir o cheiro de terra jorrar de suas raízes, para não acabar feito o que diz a canção: “Quanto mais longe da terra, tanto mais longe de Deus.”.
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Onda de frio
segunda-feira, 17 de agosto de 2020
E ela só tem dez anos
Ando de mau humor. Pouca coisa tem me feito sorrir nos últimos meses. Há tempos não consigo dar uma boa gargalhada. Os programas humorísticos continuam suas sagas nos canais de TV, mas me provocam apenas efêmeros risos que se esvaem assim que entra o comercial. O fácil acesso ao controle remoto me faz navegar por outros canais. Invariavelmente, meus dedos param num programa jornalístico, e aí fico preso ao noticiário e já não volto ao humorístico, nem tampouco ao bom humor.
Não sei se bom ou ruim, se correto ou não, mas ainda me choco e me espanto com certos atos e atitudes desumanas que o ser "humano" é capaz de praticar. Instintos primitivos, ou não, como aceitar resignado a possibilidade, realidade, de uma criança, e ela só tem dez anos, ser sistematicamente, por meses, violentada dentro da própria família sem que alguém de seu convívio perceba um mínimo de alteração em seu comportamento? Com certeza, há algo de muito errado em nossas relações maternais, paternais e fraternais, para que não notemos, ao menos nos olhos, alguém que pede socorro em silêncio. Talvez estejamos olhando muito para dentro de nós. Talvez estejamos concentrando nosso olhar na figura ao centro do espelho, sem enxergar os pequenos vultos que podem estar acenando ao fundo.
A humanidade está morta. Se não, convalesce respirando por aparelhos. De outra feita, não veríamos auto denominados "cristãos", na porta do hospital, bradando odiosamente contra familiares e médicos que trabalhavam para resgatar o fio de dignidade a que a pobre criança tem direito. Foi violado o seu direito à privacidade, à preservação de sua imagem e de seus dados, covardemente divulgados em redes sociais por uma extremista radical que se julga defensora da vida e dos bons costumes.
Não bastasse a hedionda e rotineira violação a que foi submetida, ainda tem de enfrentar, decidida, tais "cristãos" que, sem direito algum, se colocam com pretenso poder de violar o seu sagrado e legal direito sobre seu pequeno corpo de criança. Criança que, segundo o juiz que lhe concedeu o direito, ao saber da gravidez, "entra em profundo sofrimento, grita, chora e afirma não querer levar a gravidez adiante".
Os tais "cristãos" em suas hipócritas manifestações em "favor da vida", ao condenar a família e os médicos, os chamando de assassinos, transformam a vítima, e ela só tem dez anos, em criminosa. Enquanto isso, esses mesmos "defensores da vida" relegam ao esquecimento o verdadeiro, repugnante e hediondo crime de estupro.
Meu bom humor não voltará tão cedo. Nos intervalos de qualquer programa, tudo que passará por minha cabeça é que ela só tem dez anos.